Isolamento 03: O verdadeiro isolamento social (Francis Ivanovich)

15/04/2020

              Textão de Francis Ivanovich*

O tema isolamento social remeteu-me ao trabalho da professora Geny Cobra, que em 2008 defendeu sua tese de doutorado intitulada: "Psicologia de Grupos: pesquisadores em isolamento e confinamento na Antártica". Para quem tiver curiosidade de ler o importante trabalho, com 183 páginas, basta acessar o link, ao final deste texto.

O objetivo de Geny Cobra foi compreender os efeitos do isolamento e confinamento nos seres humanos. Para isso, a professora além de visitar a Antártica e ver de perto as condições de vida, entrevistou 20 pesquisadores das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, que estiveram na Antártica nos anos de 2005, 2006 e 2007.

Consta na tese o resultado das entrevistas analisadas sob a luz das teorias da psicanálise de grupo e psicologia social de grupo e da técnica de análise do discurso. Para isso, foram identificados três tipos de pequenos grupos: o grupo dos acampados, o grupo dos embarcados no navio oceanográfico (NapOC) Ary Rongel, e o grupo de pesquisadores da Estação Ferraz. Cada um desses grupos apresenta característica, estrutura e cultura próprias.

Na tese, a professora e psicóloga revela: "Como terapeuta, temos o costume de observar as pessoas e o grupo em suas expressões faciais, corporais e em suas linguagens outras; este trabalho foi, portanto, um grande exercício de cientificidade".

Não irei aqui fazer uma análise sobre o trabalho, mas acho importante termos a noção exata de que há uma diferença substancial entre estar isolado e confinado e o que estamos vivenciando durante a pandemia do Coronavirus.

Estar isolado e confinado numa região inóspita como a Antártica, em que as condições climáticas são extremas, onde a influência dos longos períodos de claridade ou escuridão afetam o corpo e a mente de forma brutal, chegando a, por exemplo, alterar o funcionamento do hormônio da tireoide, associado a Síndrome Polar T3, que provoca a mudança de humor, em nada se compara, nada mesmo, ao que estamos experimentando em nossas casas.

É preciso coragem para fazermos uma auto crítica. Há muita gente que está reclamando desse tal isolamento social, sem razão. Essa gente deveria ter vergonha de suas atitudes, algumas até irresponsáveis. A pessoa mora num confortável apartamento, possui condições de se alimentar decentemente, assistir Netflix, acesso à internet, tem água encanada, conforto, segurança, e como uma criança mimada fica reclamando sobre essa fase tão importante para não comprometer o sistema de saúde.

Há pessoas que simplesmente não respeitam o isolamento por puro egoísmo, um narcisismo infantil, uma vergonhosa falta de cidadania. O que estamos vivendo nunca foi o real isolamento e confinamento. Nem condições climáticas adversas aqui no Brasil estamos enfrentando. Aliás, o clima anda bem ameno.

Na verdade, estou me dirigindo objetivamente a uma classe privilegiada, a qual me incluo, que ainda pode se dar ao luxo de suportar esse tal isolamento social com consciência, maturidade e respeito aos profissionais de saúde.

Isolados socialmente são os que não têm casa, saneamento básico, acesso à educação, saúde, segurança e tecnologia. São milhões de brasileiros que agora esperam pelos R$ 600 Reais do Governo, isolados e confinados no esquecimento doentio. Isolados e confinados há muito tempo na miséria, no abandono, na violência por um Estado ineficiente e contaminado por um sistema político apodrecido. Para esses sim, o tal isolamento social é algo que lhes causa grande confusão.

Quando vejo a fotografia de uma banhista resistir às autoridades para que saia da praia, é revoltante. Enquanto alguns de nós precisamos de vitamina D e uma cara de pau corada, milhares de jovens brasileiros estão montados numa motocicleta ou bicicleta, enfrentando diariamente muitos perigos, inclusive de contágio pelo famigerado Covid 19, para entregar os produtos de marca, as encomendas, os remédios, o vinho em promoção, etc.

É mais do que hora de nos conscientizarmos do importante papel ao ficar em casa. Encarar esse tal isolamento social com maturidade. O verdadeiro Brasil conta com a gente. Caso contrario, assistiremos uma tragédia anunciada, ver o povo ser mais uma vez vítima de uma insuportável desigualdade social.

* jornalista, dramaturgo e cineasta.

Link para a tese de Geny Cobra: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/4335

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